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TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA - VOLTAIRE (RESENHA)



Tratado sobre a tolerância, de Voltaire (Resenha)
Pedro Virgínio P. Neto
A Essência deste tratado é a defesa da tolerância como o maior bem da humanidade, sobretudo a tolerância religiosa, que foi sempre praticada em diferentes culturas, ainda que em meio a expressões também de absurda intolerância.

Voltaire procura mostrar que mesmo no Império romano, entre os antigos gregos e entre os antigos judeus, a perseguição e a intolerância por causa de pura e simples diferença de opinião religiosa não eram fenômeno constante. Em sua opinião, a qual procura fundamentar a partir de antigas fontes, citando antigos autores e histórias de Martírios, estes tinham como causa não só as diferenças de opinião ou de crença, mas também questões de ordem pessoal e políticas que, por meio de tramas, acabavam sendo tomadas como questões de Estado, desencadeando a ira dos imperadores.

O filósofo parte da denúncia de uma condenação injusta, executada por oito juízes de Toulouse, em 1762, contra um pai de família protestante chamado Jean Calas. Este foi acusado de matar o próprio filho, com a ajuda da esposa, dos outros filhos, de um amigo e da empregada da casa. Quando o que ocorrera, na verdade, foi um ato suicida. Jean Calas foi condenado à morte por meio do suplício da roda. Seu filho foi banido da região, suas filhas internadas no convento e a mulher aprisionada.

O caso ganhou grande repercussão, sendo levado a julgamento no Tribunal Superior, após o qual, decorrido todo processo, toda a família foi absolvida. A sentença de absolvição foi proferida na mesma data tem que o pai havia sido executado três anos antes: 9 de março de 1765.

Ao narrar os acontecimentos, que resultaram na condenação de Jean Calas, Voltaire chama a atenção dos leitores para a necessidade de provas claras quando se trata de condenar um cidadão à morte, o que não havia neste caso, havendo mesmo evidências muito fortes da inocência de Jean calas.

“a fraqueza de nossa razão e a insuficiência de nossas leis, se fazem sentir todos os dias, mas em que ocasião descobrimos melhor a miséria do que quando a preponderância de um só voto leva a condenar à roda um cidadão?” (pp.17,18)

Diante da Injustiça clara, muitos expressamente afirmaram preferir “deixar um velho calvinista morrer” (p.20) do que constranger os juízes a reconhecerem que estavam equivocados.

Assim, Voltaire abre a sua reflexão sobre a tolerância, procurando demonstrar não só os efeitos negativos da intolerância, mas procurando dar ênfase ao valor positivo da tolerância, asseverando ser do “interesse do gênero humano examinar se a religião deve ser caridosa ou Bárbara” (p.21)

        Abro aqui uns parênteses para fazer uma atualização da denúncia de Voltaire. Em sua época as religiões metafísicas eram dominantes e não havia o que hoje denominamos de “Religião Civil”, caracterizada pelos Estados ditos laicos, porém totalitários, surgidos no século 20, tais como o fascismo o nazismo e o socialismo stalinista, bem como seus símiles em diversos países.

“mas, dentre todas as superstições, mais perigosa não é aquela de odiar seu próximo por causa de suas opiniões? ” (p. 121).

A ênfase, portanto, contra a intolerância diante de diferentes opiniões, atravessa os tempos e adéqua-se à contemporaneidade, na qual a intolerância política veio somar-se à intolerância religiosa. Afirma ainda o filósofo:

 “um ateu que fosse argumentador, violento e poderoso, seria um flagelo tão funesto como um supersticioso sanguinário” (p.119).

Voltaire traz vívidas descrições dos suplícios a que eram submetidos os hereges. Aponta os motivos e descreve as execuções:

“negavam o purgatório... não reverenciavam relíquias... atacavam dogmas muito respeitados…”  

E complementa:

“... no começo só se respondeu mandando queimá-los... eram suspensos na ponta de uma longa trave que se movimentava como o braço de uma balança amarrada a uma árvore; uma grande fogueira era acesa debaixo deles; eram mergulhados nessa fogueira e levantados alternadamente; iam provando os tormentos da morte em graus, até que esperassem pelo mais longo e horrendo suplício que a barbárie jamais tenha inventado. ” (p.26)

Procurando demonstrar que a tolerância só pode trazer benefício, contrariando a tese de alguns, ele nos remete a convivência pacífica já vivenciada então entre integrantes de diversos credos em países como Alemanha, Inglaterra e holanda. Nesses países conviviam judeus. católicos, gregos, socianos, menonitas, morávios, anabatistas e calvinistas. (p.30)

Para Voltaire a filosofia, a quem ele denomina de irmã da religião, foi a única que pôde desarmar as mãos da superstição (p.31), e expressa toda a sua confiança no Poder da razão:

“o grande meio para diminuir o número de maníacos, se ainda houver deles, é de entregar essa doença do espírito ao controle da razão que esclarece lentamente, mas infalivelmente os homens” (p.38)

É bem verdade que o Tom crítico do filósofo recai sobre os cristãos, que sobretudo em sua época estavam a se devorar mutuamente em meio a guerras religiosas. Tanto católicos como protestantes são criticados e denunciados por atos de intolerância. Mas o grande alvo de Voltaire é o clero católico, sobretudo os Jesuítas. Frisa o fato de que em muitos países, como na Inglaterra de então, haver em muitos padres e missionários católicos vivendo livremente, enquanto que a intolerância grassava em meio às Nações católicas contra as diversas seitas decorrentes da reforma.

Ele aponta como origem remota de todas as guerras religiosas entre cristãos, as primeiras querelas travadas ainda no século quarto, quando começaram a debater sobre dogmas.

“Aí está, portanto, o que abriu a porta a todos os flagelos que vieram da Ásia para inundar o ocidente. De cada Versículo contestado surgiu uma fúria armada de um sofisma e um punhal que tornou todos os homens insensatos e cruéis. ” (p.124)

Denuncia ainda os artifícios enganadores de teólogos intolerantes que procuravam encontrar nas palavras de Cristo uma justificativa para sua violência:

“o espírito perseguidor, que abusa de tudo, procura ainda sua justificativa na expulsão dos Mercadores do templo e na Legião de demônios mandados para passar do corpo de um processo para o corpo de 2.000 animais imundos. ” (p.95)

Ao contrário disto, Voltaire assevera que todas as palavras de Cristo e suas ações pregavam a amabilidade a paciência e a indulgência, ainda que algumas poucas passagens dos Evangelhos possibilitassem conclusões indevidas em favor da intolerância.  E conclama aos intolerantes dizendo: “se quiserem assemelhar-se a Jesus Cristo, sejam Mártires e não, algozes” (p.99)

Em outro Capítulo ele traz uma série de citações de antigos bispos da igreja e de antigos documentos, todos clamando contra a imposição religiosa.

Por fim, apesar de todos os ataques contra o cristianismo, Voltaire declara a si mesmo um “bom católico”, e um homem respeitador da teologia. Em muitos momentos deixa transparecer, em suas palavras, a crença numa condição especial da Revelação Cristã. Se tratava-se de uma estratégia para evitar perseguições frontais, é difícil asseverar.  Mas Tais passagens surpreendem o leitor acostumado com a imagem de um Voltaire absolutamente anticlerical e avesso a qualquer forma de expressão religiosa. Imagem esta constituída a partir da leitura de livros atuais e da exposição incompleta dos professores.

Voltaire reconhece o valor da religião, embora denuncie fortemente a superstição, que podemos entender como as crenças absurdas e fanáticas, as quais ele denomina de “a filha louca da religião”.

Em um dos últimos capítulos, o filósofo, depois de ter falado aos homens, dirige uma oração a Deus, na qual roga dizendo:

“tu não nos deste um coração para nos odiarmos e mãos para nos degolarmos;  faz com que nos ajudamos mutuamente a suportar o fardo de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenças entre os trajes que cobrem nossos débeis corpos, entre todas as línguas insuficientes, entre todas nossas leis imperfeitas, entre todas nossas opiniões  insensatas, entre todas nossas condições tão desproporcionais a nossos olhos e tão Iguais diante de ti; que todas essas nuances que distinguem os átomos chamados “homens” não sejam sinais de ódio e de perseguição;  que aqueles que acendem velas em pleno meio-dia para te celebrar suportem aqueles que se contentam com a luz do teu sol; (...)Que seja igual te adorar num dialeto formado de uma antiga língua ou no dialeto mais recente; (...) se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos  odiemos,  não nos dilaceremos uns aos outros no seio da paz e empreguemos o instante de nossa existência em abençoar igualmente em mil línguas diversas, desde o Sião até a Califórnia, tua bondade que nos concedeu esse instante.” (p.130)





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