A lei natural ou os desdobramentos de uma completa relativização dos valores
Pedro Virgínio
No cotidiano os seres humanos desenvolvem comportamentos e
reivindicações baseadas na crença, consciente ou não, de que há um padrão de
conduta que todos deveriam seguir.
Pressupõe-se que este padrão seja conhecido intuitivamente por todas as
pessoas. Por isso esse padrão foi conhecido, no passado, como lei natural ou
lei da natureza humana. Os princípios que constituem tal lei são como as
colunas fundamentais que sustentam uma grande construção, a construção da
moralidade humana, ou seja, das noções de certo e errado. Estas noções dão sustentação aos costumes bem
como ao próprio direito constitucional e as diversas leis positivas, escritas,
que dele emanam.
Imaginemos uma situação na qual duas pessoas discutem acerca de um
negócio que tenha sido celebrado entre ambas. Uma delas alega não ter
recebido da outra aquilo que lhe era devido. A outra, por seu turno, procura
demonstrar que está recebendo uma cobrança injusta. Ora, as duas pessoas,
embora em oposição, têm os seus discursos fundamentados na ideia de que existe
algum tipo de conduta considerada correta em si mesma. Um padrão do que seja
justo na celebração de um negócio.
É com base nesse padrão que as duas pessoas, tanto aquela que acusa,
quanto àquela que se defende, apresentam suas reivindicações. Caso não houvesse
uma noção comum, em torno da qual as pessoas pudessem dialogar, a discussão
acerca de quem estaria certo ou errado não faria o menor sentido.
Quando Jesus, o Cristo, apresentou a máxima:
“faça aos outros aquilo que você gostaria que os outros fizessem a você”,
“faça aos outros aquilo que você gostaria que os outros fizessem a você”,
Certamente estava apelando para este padrão, conhecido intuitivamente
por cada pessoa.
Todo ser humano sabe o que é inerentemente bom para si mesmo,
Consequentemente, aquilo que é inerentemente bom para mim será inerentemente
bom para todas as pessoas, posto que somos todos seres humanos.
Com base nessa máxima de Jesus, nenhum de nós desferiria um golpe contra
outra pessoa, posto que uma agressão desse tipo seja inerentemente má e, em sã
consciência, nenhum de nós reivindicaria para si mesmo receber um golpe.
Nenhum de nós, vivendo este princípio de modo rigoroso, formularia e
divulgaria algum tipo de história difamadora sobre outra pessoa, tendo
consciência de que tal história fosse uma calúnia. Pois todos reconhecemos que
a calúnia é uma ação má em si mesma e nenhum de nós, em sã consciência,
reivindicaríamos que alguém formulasse contra nós uma história caluniosa.
Tais exemplos podem lhe se parecer sem sentido, posto que tratam de
questões compreendidas de modo IMEDIATO, INTUITIVO, sem grande esforço de
raciocínio. Mas, de fato, é isso que eles procuram demonstrar: que há uma falta
de sentido na afirmação de que não há qualquer padrão objetivo de conduta que
possa guiar todos os homens, em todos os tempos e lugares. O padrão é a lei
natural.
O apóstolo Paulo referiu-se a este padrão quando em uma de suas
epístolas afirmou:
“Quando os gentios que não têm lei, fazem as coisas que estão escritas na lei, demonstram a letra da Lei escrita em seus corações”.
“Quando os gentios que não têm lei, fazem as coisas que estão escritas na lei, demonstram a letra da Lei escrita em seus corações”.
No coração do homem a lei natural está inscrita. Melhor dizendo na sua
razão.
Interessante a colocação de C.S. Lewis:
“... que sentido teria dizer que o inimigo está errado se o certo não for algo real que, no fundo, os nazistas conheciam tão bem quanto nós e tinham o dever de pôr em prática?”
“... que sentido teria dizer que o inimigo está errado se o certo não for algo real que, no fundo, os nazistas conheciam tão bem quanto nós e tinham o dever de pôr em prática?”
Duas objeções a existência de uma lei natural, da natureza humana, ou da
razão, ou ainda de um padrão objetivo de certo e errado para a conduta humana, são
comumente feitas.
O JUSTO E
O INJUSTO, CERTO E ERRADO, SÃO DETERMINADOS TÃO SOMENTE PELAS LEIS DE UM PAÍS
A primeira dessas objeções nos diz que o certo e o errado são
determinados pelas leis de um país. Ora, espera-se que as leis sejam de fato
justas. Mas com base em que critérios a sua justiça pode ser determinada, senão
apelando para noções que estão acima da própria lei escrita?
As leis mudam. De modo que na maioria dos países democráticos as
leis claramente criminalizam as formas de discriminação racial, ao passo que na
Alemanha nazista as leis justificavam tais atitudes discriminatórias. Ao ponto
de resultar no extermínio de seis milhões de judeus, no que ficou conhecido
como Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial.
Fica claramente demonstrado que tomar as leis escritas, sejam as
constituições ou as leis ordinárias, como os padrões últimos e objetivos do
certo e do errado, do justo e do injusto, é um fundamento extremamente frágil.
Se atualmente as leis se opõem a prática do homicídio, elas podem em algum
momento, dadas novas circunstâncias, estabelecer a prática do homicídio, não só
como algo legal, mas até mesmo desejável.
Nenhum de nós admitirá que uma simples mudança da letra da lei tornará a
prática do homicídio um bem, ou uma conduta justa em si mesma. Se nos apoiarmos
apenas nesse ponto, não poderíamos de modo coerente acusar o governo alemão
nazista de qualquer injustiça cometida, pois agiram de conformidade com suas
próprias leis.
O JUSTO E
O INJUSTO, CERTO E ERRADO, SÃO DETERMINADOS TÃO SOMENTE PELO QUE PENSA A MAIORIA
A segunda objeção nos diz que o padrão de conduta deve ser determinado
pela perspectiva da maioria. Aquilo que a maioria julga ser bom, assim é.
Seguindo tal raciocínio, à semelhança no raciocínio anterior, teríamos que
concluir que o racismo, o genocídio, os sacrifícios humanos, não são coisas más
em si mesmas, pois em muitos momentos da história as maiorias apoiaram tais
práticas. Consequentemente, seguindo este raciocínio, não teríamos um
fundamento claro para condenar tais ações.
Na verdade toda essa discussão, de caráter aparentemente tão filosófico
e distante, está na base das transformações radicais que as sociedades
ocidentais têm atravessado, de um modo especial a brasileira, onde mais de
sessenta mil pessoas são assassinados todos os anos.
Já dizia Confúcio:
“Aquele que derruba um fundamento pelo lado errado compromete toda a estrutura.”
“Aquele que derruba um fundamento pelo lado errado compromete toda a estrutura.”
Uma estrutura pode ser reformada. Podem-se criar quartos e salas onde
antes não havia. Pode-se modificar a cor das paredes. Levantar novas
paredes e coisas tais. Contudo, as vigas de sustentação não devem ser modificadas,
sob pena de toda a estrutura virar ruir.
Quando Friedrich Wilhelm Nietzsche propôs a morte
de Deus (o fundamento da moralidade) e com a morte dele a morte de toda e
qualquer moralidade, o que de fato ele propôs foi a remoção de uma ou até de todas
essas vigas de sustentação do conjunto dos valores humanos. Não apenas pelo
fato de ter feito ataques a religião, mas por ter relativizado toda a noção de
bem e de mal.
Seguindo o mesmo raciocínio, em seu artigo moral e Revolução, Trotsky
propôs o que ele chamou de o “fim da moralidade eterna”, ou seja, da noção de
que haja qualquer princípio objetivo para o certo e o errado. Neste caso a
conclusão lógica e radical é a de que não há qualquer princípio objetivo, válido
em si mesmo, para guiar a conduta humana em todos os tempos e lugares.
A moralidade passa a ser tão somente uma questão de conveniência, nem
sempre da maioria, mas daqueles que detêm o poder.
CONSIDERANDO A RADICALIZAÇÃO DO PROCESSO, NO FUTURO
Admitindo-se a existência de princípios válidos em si mesmos e objetivos
(identificáveis por todos os homens), os desvios de conduta daqueles que detêm
o poder podem ser identificados e questionados, requerendo-se dos mesmos que
corrijam suas ações, justificando-se mesmo uma revolta contra o seu poder.
Caso não admitamos a existência de qualquer valor objetivo, o critério
dos donos do poder, para seu governo, será tão somente seus próprios desejos.
Uma vez que não há nenhuma norma pela qual eles possam ser julgados. Pelo uso
do poder modificarão as leis para atenderem aos seus próprios interesses.
Pelo uso do poder manipularão as massas para que pensem conforme as
ideias que convém ao poder.
Paradoxalmente, a noção de verdade e de certo e errado tem sido causa de
disputas e mesmo de guerras entre os homens. Contudo, sua abolição resultará
numa estranha paz, dentro da qual os homens serão como que seres meramente
fabricados, moldados. Talvez alegres, festivos, mas destituídos daquilo que os
torna humanos.
Terão comida, bebida e prazer ao máximo, mas estarão destituídos de
vontade. Será entregue nas mãos de poucos o direito de fabricar artificialmente
o bem e a verdade.
Assim, a humanidade não será mais o monstro belicoso (feroz e guerreiro)
que tem sido ao longo de séculos de história, mas descerá à condição de mero
animalzinho, alimentado, cuidado e penteado por seus donos (A minoria de homens
detentores de monumental poder).
Não há saída, portanto, para a humanidade. A não ser descobrir, dentro
de si mesma, gravada na sua própria consciência, conforme nos ensina São Paulo,
as justas leis do Criador, a lei natural, e por ela elevar-se da condição de
animal belicoso e, ao mesmo tempo, livrar-se do deprimente destino de
animalzinho de estimação.
Entre um e outro se encontra a
condição de homens livres, racionais e amorosos por escolha.
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