Fé, solidão e angústia – Uma
reflexão sobre Kierkegaard
Pedro Virgínio Pereira Neto
Existirá relação harmônica entre
Razão e Fé? Dirão alguns que sim. Outros, porém, que não. O “sim” ou o “não”
dependem, em primeiro lugar, da compreensão semântica atribuída aos termos
Razão e Fé. Em segundo lugar, das posições ideológicas já fincadas por quem
debate a questão. Nenhuma das duas problemáticas discutirei em profundidade
aqui, neste artigo. Basta mencionar que a reflexão sobre a
aproximação/afastamento entre estas duas vias de conhecimento tem sido historicamente
marcada por embates e paradoxos.
Na Idade média, Tomás de Aquino
estabeleceu as bases da aproximação entre estas duas vias de conhecimento,
estabelecendo o lastro para a constituição da moderna Teologia cristã católica,
de modo que o catecismo, da Igreja Católica, afirma:
“Ao defender a capacidade da razão humana de conhecer a Deus, a
Igreja exprime sua confiança na possibilidade de falar de Deus a todos os
homens e com todos os homens. Esta convicção está na base de seu diálogo com as
outras religiões, com a Filosofia e com as Ciências, como também com os
não-crentes e os ateus” (1).
De modo geral, enquanto fincados
no terreno do senso comum, a maior parte dos homens de fé, se não afirmam
concordarem categoricamente com toda a extensão desta declaração, vive e age
como sendo concordante.
No século XIX, certo pensador
elaborou reflexões que colocavam em xeque a ideia de que a fé, a relação com
Deus e o próprio Deus, poderiam ser apreendidos de modo racional e sistemático.
Este pensador era Soren de Kierkegaard (1813 - ).
Para Kierkegaard, solidão e fé são
inseparáveis. A angústia e a incerteza estão, também, indissoluvelmente unidas
à experiência de fé. A solidão decorre do fato, ou do entendimento, de que cada
indivíduo é único, singular, e esta “individualidade não deve, portanto, ser entendida
como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se
coloca como finito perante o infinito” (2). Tal solidão decorre da condição de
existência do sujeito finito diante do infinito, limitado diante do ilimitado,
de capacidade de conhecer condicionada diante do incognoscível. O homem diante
de toda a criação e diante de Deus.
Perante tais contrastes decorrem
os sentimentos de solidão e angústia. Os objetos da fé não podem ser
apreendidos racionalmente. A fé constitui-se como uma relação com o
incompreensível e injustificável. A verdade que se abraça pela fé, apresenta-se
a nós de modo imediato, como num salto, e não por um processo lógico-racional,
feito o caminhar através de uma ponte. Assim, do ponto de vista lógico-racional
a fé é crença no absurdo, posto que não se pode justificá-la nem pela lógica,
nem pela moral, muitas vezes.
O caso clássico, ilustrativo
dessas relações entre fé, solidão e angústia, é o sacrifício de Isaac,
requerido por Deus a fim de provar a fé de Abraão. Abraão prontamente atendeu à
requisição do Senhor Deus. Baseado em que razão ou fundamento lógico? Em que
princípio moral ou ético? Baseado em que certeza de conhecimento? A resposta
para todas as perguntas é nenhum ou nenhuma. Qual a base, então, para a pronta
decisão de agir? A crença no absurdo, este entendido como aquilo para o qual
não tenho resposta lógica ou conhecimento certo.
Abraão estava só, diante do
incompreensível em termos lógicos. O que estava em xeque, naquele instante, era
a relação pessoal de fé de Abraão com Deus. Ele estava mergulhado na angústia
do desconhecimento, da ausência de respostas claras e inequívocas. Toda esta
angústia em função de que a
“fé representa um salto, a ausência de mediação humana,
precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o
infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do
tremor” (2).
Caso Abraão tivesse efetivamente
sacrificado Isaac, ele não teria como justificar sua ação, a não ser em termos subjetivos
e de sua condição existencial de fé singular. Seria um homicida, do ponto de
vista moral, e um louco do ponto de vista lógico, uma vez que Isaac, de acordo
com a narrativa bíblica, representava a continuidade do próprio Abraão por meio
de sua descendência, o que estava estabelecido principalmente em sua relação de
fé com o Deus da promessa.
É esta a condição do homem de fé?
Quais as implicações de uma fé vivida em tais termos? Penso que a ação dos
homens-bomba responde a tais perguntas. A vida, porém, de homens e mulheres
como Mahatma Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Martin Luther king Jr, São
Francisco de Assis, Saulo de Tarso, dentre outros, também responde a mesma
questão, com as expressões da mesma radicalidade, só que em sentido contrário à
dos primeiros. Mais uma vez a angústia da indefinição que caracteriza a
existência humana.
Em Kierkegaard a relação do homem
com Deus é a via para superar a angústia da existência, mas nesta relação,
necessariamente, deve o indivíduo lidar com o paradoxo de “compreender pela fé
o que é incompreensível pela razão” (3).
Referências bibliográficas
1. Catecismo
da Igreja Católica. Edição típica vaticana. Edições Loyola, 1997. Art. 39,
p.25. (Confira também: Razão e conhecimento de Deus – art. 35 a 39, 47, 237
286. Razão e fé – art. 50, 156 a 159, 274 e 1706).
2. História
da Filosofia. Coleção os pensadores. Abril cultural, 1999. pp. 404 a 411.
3. COTRIN,
Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 1 ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2010.
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